Durante o meu mestrado (2009-2011) pude conhecer aspectos da vida material, em especial os objetos de uso pessoal das mulheres e homens alforriados que habitaram as Minas Gerais, em diferentes localidades e períodos. Contudo, o conhecimento sobre o universo material daqueles sujeitos fora parcial, pois retratava a realidade dos alforriados que alcançaram algum grau de ascensão econômica e social naquela sociedade, visto que testadores e inventariados são detentores de posses. Para além das implicações econômicas, a cultura material daqueles sujeitos revelava as escolhas possíveis e que, por vezes, estiveram relacionadas às origens destes. Em busca de posses significativas e no intuito de mensurar a riqueza amealhada, trabalhei com todos os testamentos e inventários post-mortem, pertencentes aos alforriados que se encontravam no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - para todo o período do século XVIII. Entre animais, casas, roupas, ouro, corais, ferramentas e escravizados, não encontrei em nenhum documento, menção a objetos de marfim. Participando de uma iniciativa de pesquisa paralela, ainda durante o mestrado, estive em contato com a documentação existente nos acervos de Ouro Preto, sobre os alforriados. Para aquela localidade, o universo da cultura material dos alforriados apresentava-se também diverso. Naquele momento identifiquei um importante objeto entre os bens de uma das mulheres forras: tratava-se dos brincos de marfim Angola registrados no inventário da alforriada Caetana.[2] Entre a pesquisa de mestrado sobre os alforriados até o meu contato com o projeto de pesquisa sobre os marfins de origem africana, passaram-se quatro anos.
No ano de 2015 conheci a proposta de pesquisa sobre os marfins africanos, por meio da professora Vanicléia Silva Santos e soube da existência da circulação de marfins em Minas Gerais setecentista. Ao rever as documentações com as quais eu já trabalhara, pude reencontrar os brincos de marfim Angola. Tendo em mente questões sobre a circulação de marfim no Brasil naquele período, apresentei uma proposta de projeto de doutorado ao programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Minas Gerais, que foi aprovada. Instigada pela nova seara de pesquisa que se abriu, realizei pesquisa por amostragem sobre testamentos e inventários post-mortem, a fim de atestar a presença do marfim entre os alforriados que habitaram diferentes localidades de Minas, ao longo do século XVIII. Analisei acervos documentais pertencentes à Vila do Carmo (posteriormente, Mariana), Vila Rica (posteriormente, Ouro Preto) e Vila de Nossa Senhora da Conceição de Sabará (posteriormente, Sabará). Consultei um total de 65 documentos, sendo 20 testamentos e 45 inventários post-mortem, datados de 1741 a 1786. Destes documentos, 25 pertenciam aos alforriados de Vila do Carmo, 25 aos alforriados de Vila Rica e 15 aos alforriados de Vila de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. Entre os 65 alforriados analisados nesta análise, somente 2 mulheres forras (3%) possuíam marfim entre os seus bens, sendo esse o material mais raro. O marfim pertencente às alforriadas foi utilizado como adorno (brincos) e na composição de uma imagem religiosa (de Nossa Senhora da Conceição) [3].
Da constatação sobre a raridade da presença deste material entre os bens materiais dos alforriados, surgiram outras dúvidas e uma necessidade de compreensão mais ampliada sobre o comércio do marfim. Afinal, como mensurar a quantidade de marfim que circulara entre diferentes portos brasileiros e africanos? Como era conduzido este comércio e que valor assumia para os diferentes sujeitos que possuíam este material? O ponto de partida para essa investigação é o trânsito comercial estabelecido através do oceano Atlântico, ao longo do século XVIII. Constatei que o comércio das presas de marfim africano, envolvendo portos e sujeitos brasileiros ainda não foi objeto central de investigações historiográficas.
[1] As pesquisas produzidas pelo grupo encontram-se parcialmente publicadas, em dois livros: SILVA, V. S. (org). O marfim no mundo moderno. Comércio, circulação, fé e status social (séculos XV-XIX) 1ª Ed. Curitiba: Editora Prismas, 2017; & SILVA, V. S.; PAIVA, E. F.; GOMES, R. L. (orgs.) O comércio de marfim no mundo atlântico: circulação e produção (séculos XV a XIX). Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2017. Há também outros trabalhos destes pesquisadores publicados recentemente: DIÓRIO, R. R. e ALVES, R. C. “Na rota do marfim”: a circulação do marfim africano em terras brasileiras (Século XVIII). In: REIS, R. B. dos; RESENDE, T. A. G DE; MOTA, T. H.(orgs.) Estudos sobre África Ocidental: dinâmicas culturais, diálogos atlânticos. 1ª Ed. Curitiba: Editora Prismas, 2016. ALVES, R. C. ; DIORIO, R. R. ; MALACCO, F. ; SANTOS, V. S. . A produção, circulação e utilização de marfins africanos no espaço Atlântico entre os séculos XV e XIX - apontamentos das pesquisas. Conferência Internacional Sul-Americana: Territorialidades e Humanidades, 2016, Belo Horizonte. Caderno de Resumos da Comunicação Coordenada 5. Belo Horizonte: UFMG, 2016. SANTOS, V. S. ; PAIVA, E. F. ; FRONER, Y. ; GOMES, R. L. . O Santo Antônio em marfim do Museu de Congonhas: uma hipótese sobre a tradução da imaginária africana para outros materiais, no contexto brasileiro. Marfim Africano: comércio e objectos, sécs. XVI-XVIII. Lisboa: Faculdade de Letras, 2017. GOMES, R. L.. Sobre saleiros da Guiné, buzinas da índia e rosários do Brasil: variações em torno da categorização dos marfins africanos em coleções europeias dos séculos XVI e XVII. Conferência Marfim Africano: comércio e objectos, sécs. XVI-XVIII, 2017, Lisboa. LÚZIO, J.. A sacralização do feminino nas imagens marianas de marfim. Anais do Museu Paulista (Impresso), 2017. SOARES, M. de C. “Por conto e peso”: o comércio de marfim no Congo e Loango, séculos XV-XVII. Anais do Museu Paulista. São Paulo. Vol. 25. N. 1. Jan/Abril 2017.
[2] Para maiores informações, consulte: FRONER, Y. ; PAIVA, E. F.; SANTOS, V. S. Acervos em marfim em Minas Gerais: documentos, trânsitos e materialidade. E-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 8, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2015. Disponível em: http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/article/view/ 1799/978. Acesso em 18/11/2017.
[3] ALVES, R. C. “Marfim, corais e ouro”: um estudo sobre determinados bens materiais da população alforriada (Minas Gerais, Século XVIII). Artigo no prelo.
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